Maria Boa estava em Natal na segunda guerra?

Quando falamos em Segunda Guerra e Natal poucas figuras são tão citadas, relacionadas ou lembradas como Maria Boa, ao ponto de se tornar um mito que mistura realidade e ficção, uma história talvez bem mais cruel do que o romantismo que se tentar colocar em torno da figura da mulher ou casa de prostituição.

No geral, é comum ouvir que se tratava de uma mulher educada, que ia a missa, culta, que falava francês e que tinha bom gosto musical, mas na verdade, o que se sabe é que Maria Boa era muito discreta nas questões pessoais, sem expor relações pessoais ou amorosas, apesar de ter um trato direto com muitas autoridades da cidade e região.

Foto de Maria Oliveira Barros ou simplesmente Maria Boa.

De fato, pouco há documentado e em contrapartida há muitos relatos, causos e estórias, como do homem que saiu escondido vestido de mulher para escapar da fúria da esposa e outras mulheres que esperavam na frente do prostíbulo ou do seminarista que entrou por engano no cabaré e foi resgatado pela Maria Boa em pessoa poupando o rapaz e a Igreja de qualquer constrangimento.

Em pesquisa a jornais da época e documentos públicos, não é possível determinar exatamente quando Maria Boa abriu sua casa de prostituição, que em muitos textos é descrito como pensão, casa de drinks ou boate, localizada no bairro de Cidade Alta, na Rua Padre Pinto ou continuação da Rua Mermoz.

No livro “A Contribuição Norte Americana à Vida Natalense”, o respeitado autor e professor Protásio de Melo, dedicou um subcapítulo a Maria Boa, onde relata que em 1964, em viagem aos EUA como representante local da Sociedade Cultural Brasil Estados Unidos (SCBEU), um grupo de senhores o abordou para perguntar: “Como está Maria Boa”. Ele não fornece detalhes sobre o ano que ela iniciou sua atividade ou o contexto que os americanos veteranos lhe fizeram a pergunta.

O que levanta a questão! Seria ela famosa como garota de programa ou já como proprietária de cabaré?

Maria Boa nasceu como Maria Oliveira Barros, em 24 de junho de 1920, na cidade de Remígio/PB, mas teria crescido em Campina Grande até ser expulsa de casa pelo pai. Aqui está a primeira discordância entre os cronistas, pois há quem fale que ela foi vítima de uma sociedade machista e violenta na figura do pai que não tolerou seu relacionamento com um namorado enquanto outros afirmam que teria perdido a virgindade com um jovem da região que se negou a casar quando confrontado pelo pai da moça. Não existe consenso sobre o apelido de “Boa”, com uma versão atribuindo o adjetivo ao seu jeito atencioso com as pessoas e outra devido as curvas do corpo.

Importante citar que nessa época Maria deveria ter apenas 13 ou 14 anos de idade, pois o próximo registro é sua vida na cidade de João Pessoa, onde estaria trabalhando de secretária em um comércio, um tipo de tipografia, em 1935, ou seja, com apenas 15 anos de idade. Nessa época ela teria sofrido outra desilusão amorosa e foi quando decidiu se prostituir, próximo dos 18 anos de idade, em cidades paraibanas até vir ao RN.

Nesse momento da história vem outra dúvida. Quando exatamente Maria Boa chegou a Natal?

É quase unânime que ela tenha chegado em 1940. Essa informação não resolve o impasse e ainda gera mais perguntas, quando iniciou seu próprio empreendimento e se os americanos frequentavam a casa. Como sabemos que ela nasceu em 1920, nessa época ela teria apenas 20 anos de idade, chegando numa cidade estranha, sem contatos e como garota de programa, então dificilmente teria condições de abrir seu próprio cabaré de imediato.

Os relatos mais aceitos é que sua fama regional ultrapassou o estado da Paraíba e chegou aos ouvidos de uma cafetina local, a madame Georgina que administrava a pensão Ideal, também conhecida como Pensão Estrela, localizada na Rua Almino Afonso, na Ribeira. Como garota nesta pensão, logo Maria conquistou inúmeros fãs e recebia a atenção de inúmeros frequentadores.

É possível rastrear sua presença na pensão, pelo menos até 11 de abril de 1942, quando encontramos no Arquivo Nacional um recorte de um comunicado oficial informando telegrama retido em nome de Maria Oliveira Barros, na Pensão Ideal. Esse cabaré era muito bem frequentado e pode ter sido ali onde ela fez sua fama e pôde fazer alguma reserva financeira, provavelmente atendendo soldados cheios de dólares.

Informe de telegrama retido e destinado a Maria Oliveira, jornal a Ordem de 11/04/1942

Os militares americanos permaneceram em Natal/RN entre 1941 e 1946.E de fato existem inúmeras associações dela aos americanos no período da guerra seja em livros, peças e até em filmes, os quais a retratam como “Good Mary”, contudo não encontramos citação a ela ou à casa de convívio de sua propriedade nos textos oficias dos EUA ou entre os veteranos com os quais tivemos contato ao longo da década de 2000.

E por que algum documento do EUA citaria um bordel?

Com a chegada dos soldados e a frequência constante deles aos cabarés – um empreendimento que se espalhou por Natal e cidades vizinhas, como Macaíba e São José do Mipibu –, teve início a fiscalização por meio de postos de profilaxia com ajuda do Governo do Brasil. Esses posto acompanhavam a saúde das garotas e auxiliavam na emissão dos certificados indicando que aquele cabaré estava apto a atender os norte-americanos. Isso servia para conter qualquer epidemia de sífilis ou gonorreia entre os homens, pois muitos deles estavam para embarcar em direção ao front e soldado doente não combate.

Um documento que ajuda nessa pesquisa é o informe publicado no periódico Foreign Ferry News, de 28 de novembro de 1943, que lista 17 locais proibidos aos soldados americanos, identificados como “Off Limit”. Caso algum militar fosse pego fora dos limites de áreas determinados, poderiam ser ditos e punidos disciplinarmente.

Limites de áreas proibidas listados
Os seguintes estabelecimentos, áreas e casas em Natal estão proibidos para todo o pessoal militar, incluindo civis empregados nesta base (Parnamirim Field), pessoal de transporte contratado e todas as outras pessoas conforme descrito no 2º Artigo do Documento de Guerra, estão descritos abaixo para conhecimento:
1 Grande Hotel (proibido para soldados rasos).
2 Doca da Marinha (Porto de Natal).
3 Base de Hidroaviões das 18h00 às 06h00. (Prédio da Rampa)
4 Rua 15 de Novembro.
5 Travessa Panamá.
6 Vila de Pescadores, a oeste da ferrovia. (Santos Reis ou Rocas)
7 Wonder Bar, Rua Chile, 105.
8 Goodyear.
9 Blue Front ou “Bennies”.
10 Pensão Ideal.
11 “Belindos”, no Alecrim.
12 Anexo da Goodyear, na Avenida Almino Afonso, 43.
13 Área conhecida como “Praia de Petrópolis”, perto do USO Beach Club, entre 18h00 e 06h00. (Atual Areia Preta)
14 Macaíba.
15 Rua Chile, 116, Anexo do Wonder Bar.
16 Rua Manuel Miranda (Alecrim).
17 Todas as lojas de fotografia da cidade.

A lista não consta Maria Boa, o seu cabaré ou qualquer referência próxima. E vale salientar que nem todos os estabelecimentos se tratavam de casa de prostituição. O Grande Hotel, por exemplo, era um ambiente hierarquizado, ou seja, apenas os graduados e oficiais podiam frequentar. Em contrapartida, a Rua Quinze de Novembro era considerada de risco devido a quantidade de cabarés presentes.

A guerra é por si um evento devastador e cruel, mas existem aspectos socioeconômicos que pioram e muito essa característica. Em Natal/RN, a prostituição foi uma delas, pois a presença de centenas de homens solteiros e com dinheiro para gastar fez crescer o número de prostíbulos, tais como: Arpege, a Casa de Rita Loura, a Pensão Ideal, Alabama, Rosa de Ouro, Coimbra, Plaza, Wonder Bar, entre outros.

Nos arquivos de jornais de Natal disponíveis no Arquivo Nacional não há menções à pensão ou casa de Maria Boa antes de 14 de setembro de 1949, pelo menos não que tenhamos encontrados. E a citação em jornal envolve justamente uma investigação policial de trotes.

Conclusão

A Conclusão que chegamos é que Maria Boa ganhou sua fama mesmo devido aos militares brasileiros, da Força Aérea (FAB), e foram eles que homenagearam a mulher batizando uma aeronave B-25 “Mitchell” e criaram o misterioso troféu “Maria Boa”, até hoje disputado entre os pilotos de caça brasileiros. Trata-se de um quadro com uma fotografia dela despida e de costas.

Troféu Maria Boa disputado anualmente por pilotos da FAB até os dias atuais

A FAB se instalou a Base Aérea de Natal (BANT) em 1942 e cresceu com o fim da guerra, passando a ser um dos maiores centros de treinamento aéreo da América Latina, até os dias atuais. Ao longo dos anos, passou a receber cada vez mais militares, os quais se tornaram frequentadores assíduos das casas de diversão, entre elas, Maria Boa.

Esse cabaré viu seu auge nos ano 1950 e 1960, anos após a guerra e saída dos americanos de Natal, e também vivenciou o declínio. A partir de 1970, mudanças sociais atingiram o Brasil com mudanças significativas nas leis e costumes, principalmente com uma maior fiscalização por parte do governo militar, que mirava entre outras coisas o tráfico e exploração sexual de mulheres.

Os anos 1970 marcaram a decadência das casas de diversão, quando deixaram de ser locais frequentados por autoridades e figurões da sociedade, e passaram a receber frequentadores menos ilustres e com ficha policial. Além disso, os cabarés entraram nas páginas policiais como cenas de crimes e prisões. Com Maria Boa não foi diferente, sendo alvo constante de batidas policias, suas “meninas” presas por roubo e a casa recebendo vigaristas.

O cabaré de Maria Boa entrou e permanece no imaginário do natalense. O falecimento de Maria Oliveira Barros, em 1997, não foi suficiente para esquecerem sua história, impacto social e personagem da história potiguar.

Podemos concluir que o cabaré de Maria Boa se tornou famoso no pós-guerra, sobretudo, entre os militares brasileiros, apesar da pessoa já ser conhecida entre os visitantes. Importante distinguir as duas coisas, a primeira o cabaré lembrado com saudade e nostalgia, a segunda é a pessoa Maria Oliveira, uma mulher sofrida, vítima de agressões e que, de certa forma, conseguiu sucesso e seu espaço de respeito na sociedade natalense. Há quem diga que ela é autora da frase: “Natal me respeita, porque respeito Natal”.

Estelionatário preso na Casa de Maria Boa, em 1973