A operação de uma base militar aliada batizada por Parnamirim Field, em Natal, no estado do Rio Grande do Norte, no período da Segunda Guerra Mundial rendeu inúmeras histórias para a cidade, sendo algumas delas um tanto improváveis ou até mesmo absurdas à primeira vista. A bomba atômica e a relação com o RN pode se considerar um desses relatos um tanto impossíveis.
Há alguns anos, durante a visita de um casal de turistas, um guia natalense foi pego de surpresa com o questionamento; “Onde era a base por onde passou a bomba atômica a caminho do Oriente?”. A pergunta não tinha qualquer embasamento e como diria um professor amigo e arqueólogo Walner B. Spencer: “Na História quase tudo é possível, mas nem tudo é provável”. E realmente, não fazia o menor sentido a passagem da bomba atômica por Natal, tendo em vista que o armamento seguiu para o Pacífico e a rota até lá passando pela América do Sul seria mais distante e custosa, portanto, o esforço de levar as peças da bomba partiu da costa Oeste norte-americana em direção às ilhas próximas ao Japão.
Fora essa hipótese do transporte, outro episódio um tanto improvável sempre surge, quando inúmeros natalenses relataram ter visto aviões decolando de Parnamirim Field com areia nos porões de carga, servindo como lastro. Essas afirmações não fazem o menor sentido, pois aeronaves não necessitam de lastro, ao contrário de embarcações marítimas, e na verdade, quanto menor o peso, melhor para decolar e voar. A exceção é se o transporte da areia fosse um dos objetivos do voo. O que parecia ser o caso.
Mesmo com tudo mostrando serem hipóteses irreais, podemos encontrar sim uma relação do RN com a bomba atômica e para falar sobre o assunto precisamos voltar alguns anos, no período pré-guerra. Ainda no século XIX, investidores norte-americanos descobriram o poder energético de um tipo de areia rica em Urânio e Tório, mais conhecida por areia Monazítica ou Monazita, encontrada em abundância na Índia e no continente africano. E para a surpresa de alguns, em idos de 1889, uma grande reserva foi identificada em Guarapari, no Espírito Santo, no Brasil. Há época, o Governo do Brasil concedeu total autorização para investidores estrangeiros explorarem o minério. Essa história renderia um capítulo à parte com direito a acordos secretos com o Governo dos EUA, CPI no Governo Vargas e estrangeiros retirando toneladas e toneladas do minério a preço de banana e enriquecimentos bilionários suspeitos.
É preciso explicar que no início do século XX o interesse na areia Monazítica era na aplicação da geração de energia elétrica devido aos compostos condutores, por isso o interesse em sua extração. Contudo, com o passar dos anos, outros materiais se mostraram mais eficientes na geração de energia, transformando completamente as motivações econômicas em torno da areia monazita, com destaque para a indústria de armamento nuclear, sobretudo durante a segunda guerra mundial por causa dos elementos radioativos presentes – tório e urânio –, e o advento da pesquisa atômica.
Na década de 1940, após a famosa carta de Einstein-Szilàrd endereçada ao presidente Franklin D. Roosevelt, alertando para o avanço da pesquisa em prol de uma possível bomba alemã, catalisou a criação do Comitê do Urânio nos EUA – antes mesmo da guerra – e posterior Projeto Manhattan que culminou na criação das bombas atômicas que puseram fim na guerra, matando milhares de pessoas nas cidade japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Quem comandava esse projeto era o general Leslie Groves, que pediu ao secretário de Estado Americano, Cordell Hull, que viabilizasse um acordo com o Brasil de importação da areia Monazítica.

No livro “A Contribuição Norte-Americana à Vida Natalense”, do professor Protásio de Melo, consta que um dos visitantes ilustres de Parnamirim Field foi o secretário Cordell Hull, em meados de 1944. No livro não há qualquer menção sobre os motivos da passagem dele por Natal, contudo, neste mesmo ano foi fechado o acordo que resultou no envio de 5 mil toneladas de minério brasileiro aos EUA, que se estendeu até a década de 1950.
No RN, a areai monazítica foi identificada na mesorregião Seridó, um local tradicional na extração de minérios, o que atraiu diversos compradores estrangeiros, interessados no tungstênio, urânio, tório, entre outras materiais encontrados na chelita e areia monazítica.
Contudo, vale esclarecer que apenas o fato de ter urânio e tório no solo não significa que este material seja ideal para a fabricação da bomba. No caso do urânio, por exemplo, o mais abundante na natureza seria o urânio-238 (U-238) encontrado em 99% das amostras naturais e pouco radioativo, e baixa capacidade de reagir no processo de fissão nuclear. Diferente do U-235, muito radioativo e mais raro de ser encontrado, presente em apenas em 0,7% do urânio natural. Essa variação entre o 235 e 238 representa os isótopos, ou seja, são variantes do mesmo elemento químico que possuem o mesmo número de prótons, mas diferentes números de nêutrons.
Sem aprofundar muito na questão científica, basta explicar que U-235 é especial porque seus átomos podem ser facilmente divididos (fissionados), liberando energia e mais nêutrons, que podem atingir outros átomos de U-235 e manter uma reação em cadeia. Essa propriedade é essencial para usinas nucleares e bombas atômicas. No entanto, como ele é raro, é necessário um processo chamado enriquecimento do urânio para aumentar a concentração de U-235 (normalmente entre 3 e 5% em usinas nucleares e acima de 90% em armas nucleares).
Ainda na década de 1940, além desse processo, os americanos desenvolveram a extração do U-233, artificialmente, por meio do tório, utilizando um dos primeiros reatores nucleares no experimento. No fim, para cada mil quilos de areais monazítica, se extraía 54 quilos de tório. A capacidade energética do tório era 300 vezes maior do que o carvão mineral. Em um cenário ideal e controlado, a proporção seria de 1:1 de tório para U-233. E talvez seja no tório o maior interesse no minério potiguar, sobretudo, da região Seridó e da Paraíba.
Na região em questão é comum encontrar relatos de pessoas que dizem ter trabalhado com os americanos durante a guerra, com interesse inicial no urânio. Uma dessas pessoas era Jaime Ariston Araújo, já falecido e que teve grande atuação na mineralogia potiguar. De acordo com os familiares, ele mesmo não concordava que o material retirado do Seridó tenha sido utilizado nas bombas de Hiroshima e Nagasaki, apesar de conhecer o potencial do urânio e tório. Jaime atuou ao lado dos americanos por anos, na região da serra do Boqueirão, em Parelhas, sobretudo. Algumas situações ajudaram a criar esse mito da relação entre o RN e as primeiras bombas. Nos dias atuais, já se sabe a origem do urânio utilizado nesses armamentos, sendo principalmente do Canadá e Congo Belga, este último contrabandeado para os EUA diz antes da Bélgica cair nas mãos dos alemães.



Em todo caso é fato que os americanos levaram areia monazítica do RN e PB, pois podemos encontrar relatos orais e materiais de jornais sobre o tema, além de documentos oficiais de ambos os governos falando sobre as capacidades radioativas dos materiais retirados. Uma das matérias, a qual consideramos uma das mais intrigantes, foi publicada no The New York Times, em 25 de julho de 1946, pouco menos de um ano do fim da guerra, cujo título dizia: “Urânio Desaparecido: Um Mistério no Brasil”. O texto cita que toneladas de urânio desapareceram de um depósito sob controle americano, na cidade Currais Novos, no RN.

“Mistério cerca o paradeiro de várias toneladas de minério de urânio, um ingrediente importante da bomba atômica, que foi extraído no Brasil durante a guerra em conexão com outras operações de mineração e armazenado por um tempo perto da cidade de Currais Novos, no Estado do Rio Grande do Norte. Esse urânio foi obtido por meio de um processo caro, realizado durante a guerra, para extrair vários metais – mica, berilo e tantalita – de pequenos pedaços de rocha mineralizada conhecidos como pegmatitos, que são encontrados em grande quantidade em várias partes do Brasil, incluindo o Estado de Minas Gerais, no nordeste do país. O minério de urânio era um subproduto dessa operação. Alega-se que ainda não foram encontradas grandes jazidas de minério de urânio no Brasil, como as do Slave Lake, no Canadá, de onde vieram os ingredientes para as primeiras bombas atômicas. No entanto, grande parte do país possui a mesma formação geológica arcaica na qual o minério de urânio é encontrado no Canadá.” Consta na matéria do NYT.
O assunto ao que parece passou despercebido pela imprensa local, pois nada foi encontrado nesse período. De acordo com a tese de doutorado do Curso de História da Universidade Federal Fluminense, em 1948 uma fonte do Consulado dos EUA entregou uma amostra de urânio retirada de uma cidade do RN, sem citar qual, causando interesse dos diplomatas. Parece que o surgimento da Guerra Fria, já nos anos 1950, despertou atenção para o material radioativo retirado do Brasil, entre eles em solo potiguar. E o que tudo indica é que testes atômicos foram feitos a partir de urânio e tório retirados do RN e PB. Em 1953, o interesse norte-americano só aumentou, como detalha o Diário de Notícia, periódico do Rio de Janeiro, onde consta que o Conselho Nacional de Pesquisa confirmou a existência de areia monazítica concentrada no RN e PB, o que resultou em ações da Embaixada Americana, até o envio de contador Geiger, para possíveis explorações de urânio no Brasil.
Para encerrar, não é objetivo do blog vangloriar ou romantizar o uso da bomba atômica e nem consideramos motivo de orgulho que os recursos naturais do RN tivessem sido utilizados no projeto ou execução de armas nucleares ou qualquer dispositivo de destruição em massa. Até os dias contemporâneos, diversas entidades continuam a estudar a radioatividade do minério potiguar, inclusive no uso dessas pedras na construção civil e possíveis danos à população, mostrando que o assunto é sério e merece ser tratado como tal.
Referências:
Vanished Uranium a Brazil Mystery. The New York Times. New York, NY, USA. 1946.
ROLIM, Tácito Thadeu leite. Brasil e Estados Unidos no contexto da “Guerra Fria” e seus subprodutos: Era Atômica e dos Mísseis, Corrida Armamentista e Espacial, 1945-1960. UFF/RJ. Niterói/RJ. 2012.
*Um agradecimento especial ao professor geólogo Edgar Dantas e a Paulo Oliveira Júnior, que compartilhou conosco a história do avô Jaime Ariston.