Acidente com B-29 foi o maior ocorrido em Natal durante a guerra

Por Leonardo Dantas

Em agosto de 1944 um fato interrompeu completamente o cotidiano da base aérea de Parnamirim Field e, mais uma vez colocou, Natal na história da aviação, quando a B-29 “Superfortaleza Voadora”, Número de Série (SN) 42-24482 chocou-se contra o solo, em uma noite escura, revelando uma enorme bola de fogo e deixando um saldo de nove mortos e um gravemente ferido.

Entre as dezenas de acidentes aérea que ocorreram em Parnamirim Field, esse se torna importante por se tratar de uma B-29 e a missão que servia de cenário naquele momento da história. Tratava-se dos primeiros aviões do tipo a entrar em operação e que tinha como objetivo atacar o Japão (saiba mais).

O fato em si não é algo novo e está nos registros aéreos ocorridos em Natal, durante a segunda guerra mundial. A novidade é que o Blog P-47 teve acesso ao relatório oficial do acidente, o qual contém o depoimento do militar sobrevivente. Mas antes de chegar nesse nível de detalhe, vamos falar sobre as condições do ocorrido.

Foto da investigação oficial (Acervo do autor)

O avião era um modelo B-29-30-W, cuja matrícula #4224482 era vinculada a 20ª Força Aérea do Exército Americano (20th AAF) e estava em missão de ferry para a 58th Bomb Wing, ou seja, traslado até o front de combate, que no caso seria o cenário China, Burma e Índia (CBI), passando pelo Himalaia para bombardear o Japão a partir de bases na China.

A tripulação era composta por:

  1. Capitão Austin J. Peek (Piloto “P”) – SN 0439659 – Morto
  2. 2º Tenente Dale E. Shillinger (Copiloto “CP”) – SN 0687351 – Morto
  3. 2º Tenente Willard R. Heintzelman (Navegador “N”) – SN 0692002 – Morto
  4. 2º Tenente John F. O´Neill (Bombardeiro “B”) – SN 0746743 – Sobrevivente
  5. 2º Tenente Leroy Judson (Engenheiro de Voo “E”) – SN 0864237 – Morto
  6. Cabo Walter R. Newcomb (Controlador de Tiro Central “CFC”) – SN 37129267 – Morto
  7. Cabo Anthony A. Cobbino (Operador de Radar “R”) – SN 31300635 – Morto
  8. Sargento Kurt F. Seeler (Artilheiro Esquerdo “LG”) – SN 37396689 – Morto
  9. Cabo David C. Prendiz (Artilheiro Direito “RG”) – SN 39560049 – Morto
  10. Sargento Especialista Harold R. Brown (Artilheiro de Cauda “TG”) – SN 6917127 – Morto
Documento endereçado ao piloto Peek (Acervo do autor)

No relatório oficial consta um documento classificado com Confidencial, oriundo da estação número 2 do South Atlantic Wing – Air Transport Command (SAW-ATC), sediada em Parnamirim, identificado pelo APO 604 (código postal da base – Army Post Office), datado em 10 de agosto de 1944 – dia do acidente.

O destinatário do documento era o piloto Peek onde ele declara saber dos riscos da Malária para sua tripulação, informa dados de identificação do avião (Aircraft nº 4482), navegação com auxílio do rádio, destino (Accra na África), data (10-8-1944), horário da partida (21h00 GMT ou 18h00 local) e condição climática naquele momento – 16h00 local – para decolagem. Chama a atenção que esta última opção ficou em branco, pois como iremos ver mais à frente, chovia um pouco em Natal.

De acordo com o relatório, o acidente deixou o avião completamente destruído e aconteceu por volta das 21h42 GMT, ou 18h42 horário local, no dia 10 de agosto de 1944, a cerca de 3,5 milha a sudeste do campo de pouso, tendo a pista de decolagem como ponto de referência, ou mais de 5,5 km de distância. Sobre a condição climática, era possível ver nuvens espaças e a baixa altitude, temperatura de 23 ºC (75 ºF), vento de 10 milhas por hora (aproximadamente 16 km/h) sentido sul-sudeste. Condições consideradas boas e sem impedimento para a decolagem.

Outros acidentes aéreos já tinham ocorrido em Natal/RN à época, contudo, por se tratar de uma B-29, um avião até então nunca visto antes e considerado um dos maiores do mundo, deixou um marco na história da cidade quando o assunto é aviação. Muitas testemunhas se apresentaram e tiveram depoimentos colhidos, inclusive, um dos tripulantes, o segundo tenente John F. O´Neill, que ocupava a posição de bombardeador naquele voo.

Importante citar que a B-29 #4482 teria permanecido em Natal por quase um mês, antes de cair. Um dos depoimento é do major Earl C. Lory, importante oficial de Parnamirim Field  e responsável pela segurança da base.

Segue a tradução do seu depoimento:

RESTRITO

DECLARAÇÃO DO MARECHAL PROVOST SOBRE O ACIDENTE, B-29, #42-24482

O B-29, #4482 chegou em 14 de julho de 1944. O procedimento habitual de guarda e manutenção de “Bombardeiros Muito Pesados” foi seguido. Um guarda armado foi designado para o avião, e o guarda recebeu ordens de admitir apenas membros da tripulação e pessoal de manutenção. O pessoal de manutenção precisava ter uma ordem de serviço para o avião, listando o pessoal que estava trabalhando e assinada pelo Oficial de Engenharia.

EARL C. LORY

Major, C.M.P.,

Provost Marshal.

Declaração do major Earl Lory (Acervo do autor)

Esse depoimento corrobora com o relato do fotógrafo John Harrisson “Jack” que conta em seu livro – Fairwing Brazil – sobre o dia da chegada das B-29 em Natal e sobre o esquema de segurança que impedia qualquer foto das aeronaves “secretas”.

A partir de agora, vamos tentar fazer uma cronologia do acidente transcrevendo os depoimentos e a conclusão do relatório sobre o fato. Vamos iniciar pelo sobrevivente, o segundo tenente John F. O´Neill. Ele ficou gravemente ferido e infelizmente não temos a confirmação de tenha sobrevivido, mas conseguiu falar para a investigação, lembrando de ter ouvido no fone – cada tripulante tinha acesso a fonia da comunicação interna da aeronave – uma fala do artilheiro da esquerda sobre labaredas de fogo no motor Nº02, contudo, o engenheiro de voo corrigiu de imediato.

O´Neill relatou que o piloto comunicou sobre o recolhimento do trem de pouso, que foi confirmado pelos tripulantes, porém, não se recorda de ter ouvido do piloto nem do copiloto sobre o recolhimento dos flaps, o que seria reportado no fone. De acordo com ele, poucos segundos depois sentiu o impacto e o acrílico sobre seu rosto, tendo em vista que ele estava no nariz do avião (Declaração do 2º ten. O´Neill).

Outro depoimento e que pode ser um dos mais importantes é do cabo José F. Amaral, operador da Torre Sul de Parnamirim Field, pois teria acompanhado toda a decolagem e percebeu que a aeronave estava com a iluminação de navegação apagada. Ele chegou comunicar a torre principal e procurado a B-29 com um binóculo, pois percebeu que o avião estava mais baixo do que o normal.

Já o oficial do Departamento de Engenharia, o capitão Frederick W. Apsey falou sobre a ausência de um piloto de testes qualificado para a B-29 em Parnamirim Field (Natal/RN), contudo, isso não teria impedido o voo pois o piloto descartou qualquer irregularidade ou problema na aeronave. Em quase um mês estacionada em Natal, a aeronave passou com 25 horas de inspeção, como troca de óleo em um dos motores e outros serviços paliativos, como revisão do sistema hidráulico e da bússola. Contudo, é possível encontrar no relatório alguns serviços de reparo que não foram feitos em Natal por falta de mão de obra ou peça para o B-29, mas nada que impediria o voo.

Os outros depoimentos são de pessoas que estavam pela base, com declarações que nem sempre se complementam. Muitos militares relataram ter visto uma explosão ainda em voo, como é o caso do capitão Adler e o tenente Poltrino.

O capitão Jack Adler estava a cerca de 1,5 km da cabeceira da pista 16, e contou ter ouvido o B-29 acionar os motores antes de decolar e acompanhar, visualmente, parte do voo até a explosão. Ele foi uma das primeira pessoas a acionar o serviço de emergência da base e foi até o local da queda onde interrogou duas testemunhas, dois brasileiros que moravam próximos e foram ver o ocorrido. Por fim, afirmou ter visto uma grande bola de fogo e clarão no céu que perdurou fortemente por alguns segundos.

Já o tenente Arthur Poltrino estava na quadra de basquete, por trás da capela e distante 1,7 km da cabeceira da pista 16. Ele afirmou ter visto duas explosões, sendo a segundo bem mais forte do que a primeira, ao ponto de iluminar onde estavam, ou seja, a mais de 6 km do local do acidente.

Ao observar o local do acidente e ouvir as testemunhas, os investigadores concluem que o bombardeiro não ganhou altitude suficiente e se inclinou para a esquerda, até tocar o solo. Isso pode indicar que o piloto não observou os instrumentos, ou não deu tempo de qualquer manobra para corrigir problemas. A falta de comunicação no fone demonstra que o piloto e o copiloto não estavam cientes dos risco antes da queda.

Por fim, o relatório concluiu que não possível determinar a causa da queda. Veja abaixo a descrição do documento:

CONCLUSÃO DA INVESTIGAÇÃO

15 de agosto de 1944

A aeronave mencionada decolou da estação às 21h42 GMT, em 10 de agosto de 1944. A corrida de decolagem, na medida em que foi observada pelo pessoal de terra, foi normal em todos os aspectos. A aeronave foi registrada como tendo decolado, livre e no ar, portanto aparentava estar fora de perigo pelo operador da Torre Sul (torre auxiliar localizada aproximadamente 300 pés a oeste da pista 16). A aeronave então caiu em um ponto três milhas e meia ao sul-sudeste do campo. O ponto do acidente estava a 15º à esquerda da pista. O terreno na cena do acidente era plano e tinha a mesma elevação do campo.

A investigação na cena do acidente indicou que a aeronave entrou na área com a asa esquerda baixa. Isso foi estabelecido pelo fato de que o corte das árvores e arbustos foi feito em um ângulo definido. Do ponto de primeiro contato com a folhagem até o ponto onde ocorreu o impacto com o solo, uma distância de cerca de 300 pés, foram encontrados vários pedaços do sistema de degelo da asa esquerda. Somente no ponto onde a aeronave realmente atingiu o solo foi possível perceber qualquer evidência de fogo. A aeronave aparentemente deslizou por mais cerca de 300 pés, momento em que se partiu em duas seções (ver diagrama anexo). A área desde o ponto onde a aeronave atingiu o solo até onde ela se partiu em duas mostrou evidências de fogo extremo. A asa direita foi encontrada intacta, o que corrobora a teoria de que o avião caiu com a asa esquerda baixa.

As declarações das testemunhas que observaram o voo da aeronave divergem com relação a se a aeronave estava em chamas no ar, se explodiu no ar ou se o fogo ocorreu apenas após o contato com o solo. O comitê acredita que a última hipótese seja verdadeira. Isso se baseia na declaração do operador da Torre Sul, que observou o voo com binóculos e teve a melhor linha de visão, juntamente com a declaração do bombardeiro, que afirma que não houve fogo ou explosão durante o voo. Além disso, acredita-se que, se a aeronave tivesse explodido no ar, os destroços teriam se espalhado por uma área muito maior. Da mesma forma, se a aeronave estivesse em chamas no ar, a folhagem cortada mostraria sinais de chamuscamento ou queima. Em vez disso, o fogo só pôde ser evidenciado no ponto de contato real com o solo.

Dada a completa destruição da aeronave, a ausência de qualquer testemunha ocular definitiva e a incapacidade do único sobrevivente restante de fornecer um relato do que ocorreu, este comitê considera que não é possível determinar de forma definitiva a causa deste acidente. Consideraram-se várias causas possíveis; no entanto, todas elas são baseadas em teoria e circunstâncias, e a seleção de qualquer uma delas como causa seria mera conjectura. Deve-se afirmar que não houve falha estrutural aparente. O fato de o bombardeiro não ter ouvido nenhuma conversa entre o piloto e o copiloto indica que não havia uma situação de emergência em andamento.

Uma discussão sobre as teorias e circunstâncias que o comitê considera como possíveis causas segue abaixo. Os flaps da asa direita foram encontrados na posição “acima”. Eles estavam totalmente retraídos e mostravam sinais de poucos danos. O comitê está convencido de que a retração foi realizada durante o voo e não ocorreu como resultado do acidente. O bombardeiro, em sua declaração, afirma que não ouviu o piloto ordenar que os flaps fossem retraídos. Ele também declara que era prática do piloto dar esse comando em voz alta, e dos artilheiros confirmarem sua execução. Como aparentemente nenhuma dessas duas práticas ocorreu neste voo em particular, é levantada a possibilidade de que o copiloto possa ter retraído os flaps por iniciativa própria. Caso isso tenha ocorrido, o piloto, não estando ciente, não poderia ter feito as correções necessárias no voo, e a perda de altitude que levou ao acidente teria facilmente ocorrido. Outra possibilidade que não deve ser ignorada é que o piloto pode ter tentado voar utilizando tanto os instrumentos quanto os procedimentos de usuais após a decolagem.

A técnica usada pela maioria dos pilotos neste tipo de aeronave é manter a altitude mínima até que uma velocidade de voo de 200 MPH seja atingida. Nessas condições de altitude, uma distração da atenção do piloto com relação aos instrumentos, mesmo que por apenas alguns segundos, poderia causar a queda de uma asa ou fazer com que a aeronave assumisse uma leve atitude inclinada. O comitê classificou este acidente como um incidente de decolagem porque acredita que, durante a subida, que é interrompida para atingir uma alta velocidade aérea, a aeronave não oferece total liberdade e capacidade de manobra. Com a pequena margem de altitude, a menos que o piloto operasse a aeronave exclusivamente pelos instrumentos, sem qualquer tentativa ou preocupação de obter referência visual com o solo, uma pequena variação na atitude de voo da aeronave passaria despercebida pelo piloto e o acidente poderia ocorrer. Embora ambas as possibilidades mencionadas acima se encaixem na categoria de erro do piloto, este conselho acredita e conclui atribuir definitivamente o acidente a uma dessas causas seria uma injustiça. Com evidências insuficientes para estabelecer claramente qualquer conjunto de causas, o comitê decidiu que a causa deste acidente é indeterminável.

RECOMENDAÇÕES:

Acreditando fortemente que não houve falha no motor ou na estrutura, o comitê é da opinião de que o acidente poderia ter sido evitado se a decolagem tivesse ocorrido durante as horas diurnas. Tem sido a política operacional desta estação permitir decolagens noturnas, considerando que a decolagem noturna, por si só, é menos perigosa do que fazer a aeronave chegar a Accra nas primeiras horas da manhã, quando as condições de neblina, nevoeiro e clima são menos favoráveis.

A experiência nesta estação mostra que as técnicas de decolagem dos pilotos variam muito. Decolagens foram testemunhadas aqui que não são compatíveis com uma operação segura. Foi observado que alguns pilotos entram em “estol” com suas aeronaves, até o ponto de o patim da cauda raspar na pista antes de ganhar o ar.

Outros realizam corridas de decolagem longas e mantêm a aeronave na altura das copas das árvores para atingir altas velocidades de voo. Recomenda-se que seja alcançado um nível mais elevado de experiência para pilotos que operam este tipo de aeronave, a fim de que um maior grau de proficiência seja obtido para decolagens noturnas sob as cargas pesadas que são necessárias para o movimento rápido destas aeronaves nas rotas do Comando de Transporte Aéreo.

Anexos:

Depoimentos do Relatório .

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